terça-feira, dezembro 12, 2006

... o mundo não mudou

Suas mãos sujas seguravam o binóculo enquanto a procurava do outro lado do vale. Eram tantos os contrastes, tantas diferenças, na verdade, muito mais que aquele vale os separava.
A primeira vez que a vira, era um vulto debruçado sobre a janela, com os olhos perdidos, parecia sonhar. Tinha sido semanas antes, muito antes do assalto de hoje. Agora com o binóculo podia vê-la em detalhes. Mas antes, apenas o vislumbre do seu vulto já havia lhe roubado a atenção, o sono, o sossego, os anseios, os pensamentos, os planos. Logo ele que vivia de roubar os outros. Mas depois dela, tudo havia mudado. Este foi o último assalto, apenas para ter o binóculo, ele se prometeu. Agora fazia planos, sua vida adquirira um sentido, um brilho, um tom de esperança.

Pelo binóculo ele a tinha bem perto, quase podia tocá-la. Seus olhos pretos, seu rosto sério, seus cabelos fartos de cachos que desciam deslizando pelo pescoço esguio e delicado.
Sonhava com ela todas as noites, imaginava sua voz e seu toque. Acordava suado, agitado. Várias vezes ensaiou palavras e foi à porta de seu prédio, mas de lá voltava cabisbaixo, vencido pela insegurança e pelo medo da rejeição. Outras vezes, sonhava com seu cheiro, seu gosto, inventava-lhe um nome e ganhava um sorriso. Mas curioso, pensava ele, vista pelo binóculo ela pouco sorria, era tão séria e muitas vezes chorava. Nestes momentos ele se transportava e do seu lado a protegia, abraçando-a ternamente.

Os dias passavam na esperança do encontro. Numa tarde, chegando em casa, ele era pura satisfação. Conseguira um trabalho como moto-boy. Como sempre se dirigiu para o alto da laje, binóculo nas mãos, enquanto isso ensaiava as palavras que brevemente diria a ela. Estava decidido, iria mais uma vez esperá-la defronte do seu prédio, e quando ela saísse, se encheria de coragem para aproximar-se. Enquanto pensava, trouxe o binóculo aos olhos para tê-la, desta forma, pelo menos por enquanto mais perto.
Ela parecia agitada, ia de um lado a outro do quarto repetidamente e chorava. Ele procurou seus olhos, estavam vermelhos, carregados de angústia e suas mãos trêmulas deslizavam freneticamente sobre os cabelos. Ela encostou-se no vidro da janela, colocou a cabeça entre as mãos. Ele quis sair ao seu encontro, mas inesperadamente ela abriu a janela e sentou-se sobre o peitoril, estava agitada, olhava para o nada e seus olhos transmitiam uma tristeza absoluta. Quis abraçá-la, mas diante da impossibilidade, gritou e acenou-lhe. Ela não o enxergava, ele jamais existira. Gritou mais uma vez, ela então olhou à frente e lhe sorriu abrindo os braços, ele tentou devolver o sorriso, mas ela não mais estava lá.


(Sarah K > dez/2006)

15 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo Sara, que triste... me lembra a paixão platônica do filme O Homem que Copiava, mas lá, no filme, teve final feliz...

Segunda Pele disse...

Belo texto. Adorei!!

Beijos, ótima quarta! =)

Anônimo disse...

É... assim... Como dizer... Que foi isso ó.Ò

Lindamente triste... Perfeitamente escrito e com cada cena me seu lugar fazendo correr levemente...

Simplesmente perfeito... Adorei.

Parabéns pela bela escrita e obrigado de coração pelas palavras no RT =]

:********

Naeno disse...

Muito bonito. Bem elaborado, um conto perfeito.
Vi muita ternura, muita busca, muito amor.

Um beijo,

Naeno

Anônimo disse...

Upz!!!

Não esquecendo claro, que a música que colocou aqui no seu blog é simplesmente fabulosa =]
Deixa babanco =]~
Andante roxxx =]

:****

Melissa disse...

Saber expressar o que sentimos com palavras é uma arte e vc tem o dom!
:) Lindo texto!
Quanto às janelas, tbm tenho uma queda, não sei ainda o motivo, adoro!
:)
bjo

Papoila disse...

Lindíssimo este texto Sara! Lindíssimo e triste mas pleno de sentimentos. Obrigada pela visita ao campo.
Beijo

Anônimo disse...

Tão triste...
Todo mundo já se sentiu um pouco assim, né?
:(

Anônimo disse...

Olá voei do blog do Naeno prá cá sem sair daqui mesmo, até que enfim eu encontrei outros bloggers daqui...tô em sobressalto, volto com calma para ler tudo...

Beijos
marcelo

Anônimo disse...

A vida sempre passa... as vezes pela janela...
Adorei te conhecer.
Paz!

Barbara Lucas disse...

interrompemos extraordinariamente as férias da Babi para visitar amigos da blogosfera e deixar um beijo bem gostoso!
:*
agora... segue o ócio...
sabe, to amando minhas férias, até artesanato andei fazendo... vem ver...

Ricardo Rayol disse...

Que final... triste mas forte.

Anônimo disse...

Sarah que bacana, adorei o texto e o final surpreendente!

Bjs

Sr. Eulálio disse...

Bravíssimo, menina de trança do pescoço esguio e delicado...

Um beijo do Eulálio.

fantasma disse...

o q dizer...